SÃO PAULO (AP) — Simone Guimarães, professora aposentada de 52 anos do Rio de Janeiro, perdeu pelo menos cinco parentes para a COVID-19: o marido, a irmã, dois cunhados e o padrinho do neto. Ela também perdeu amigos e vizinhos.
Ela acordou no sábado com a notícia de que o Supremo Tribunal Federal do Brasil ordenou a prisão preventiva do ex-presidente Jair Bolsonaro, a quem ela culpa por suas perdas. Um juiz afirmou que Bolsonaro pretendia escapar dias antes de iniciar uma sentença de 27 anos de prisão por tentativa de golpe depois de perder as eleições presidenciais de 2022 para Luiz Inácio Lula da Silva.
“É um pequeno começo de justiça começando a ser feita”, disse ela. “A impunidade tem que acabar em algum momento. E no caso dele, sofremos muito.”
As redes sociais encheram-se de postagens no sábado lembrando pessoas perdidas para o COVID-19, o que também aconteceu em setembro, quando o Supremo Tribunal condenou Bolsonaro, embora o caso legal não tivesse nada a ver com a resposta do ex-presidente à pandemia.
Guimarães acompanhou cada votação no julgamento de Bolsonaro. Ela estava em um hospital com a irmã em 2021, quando Bolsonaro, que era presidente na época, imitou pacientes com falta de ar.
“Eu estava com a testa encostada na da minha irmã. Ela disse: ‘Não consigo respirar'”, lembrou Guimarães. Sua irmã morreu mais tarde. “Não consigo nem dizer o nome dele.”
Ela agora se sente indiretamente justificada, como muitos outros brasileiros que perderam parentes devido à doença. Eles dizem que a condenação e a prisão de Bolsonaro limparam suas almas sem fazer justiça por sua dor.
“Tenho muito medo de que esta condenação por crimes relacionados ao golpe diminua as condenações por outros crimes cometidos durante a pandemia”, disse Diego Orsi, tradutor de 41 anos de São Paulo, a maior cidade do país. “Sinto um pouco como se os julgamentos de Nuremberg tivessem condenado os nazistas por invadirem a Polônia, e não por genocídio”.
Crescendo e depois separados
Orsi cresceu ao lado do primo Henrique Cavalari. Eles eram como irmãos. Em fotos antigas de família, os dois aparecem juntos soprando velas de aniversário.
Quando adolescente, Cavalari apresentou Orsi às bandas de rock. Politicamente, porém, eles se distanciaram. Orsi se considera progressista enquanto Cavalari apoiou Bolsonaro.
“Meu tio sempre foi para a direita e meu primo cresceu com essa mentalidade”, disse Orsi. “Durante a pandemia, ele se convenceu de que não havia motivo para preocupação, que o distanciamento social restringia a liberdade e que a prioridade deveria ser proteger a economia.”
Cavalari dirigia uma oficina de motocicletas e era um forte apoiador de Bolsonaro. Ele não tinha dinheiro para fechar a sua oficina e a retórica do líder de extrema direita repercutiu entre os mecânicos, que compareceram aos seus comícios mesmo durante os meses mais mortíferos da pandemia.
Em junho de 2021, milhares de apoiadores do presidente andaram de moto por São Paulo com Bolsonaro. Nesse mesmo mês, Cavalari morreu de complicações do COVID-19. Ele tinha 41 anos.
Orsi não tinha 100% de certeza se Cavalari estava no rali de motocicletas, mas disse que seu primo participou de eventos semelhantes anteriores.
“Ele era recém-casado e pagava o aluguel do seu negócio. Ele precisava do dinheiro”, disse Orsi, lembrando que não podia visitar Cavalari na unidade de terapia intensiva do hospital porque apenas familiares imediatos eram autorizados. “Mas me disseram que uma das últimas coisas que ele disse foi para alertar seus pais para que se cuidassem, que a doença era grave”.
A família de Orsi continua dividida, assim como o resto do Brasil, e ele acredita que a condenação de Bolsonaro não mudará a opinião pública nem reconciliará outras famílias.
Sentindo tristeza e vingança
Bolsonaro negou irregularidades durante seu julgamento. No início deste mês, o Supremo Tribunal rejeitou por unanimidade um recurso da sua equipa jurídica, embora outro possa surgir esta semana. Antes de sua prisão no sábado, ele estava em prisão domiciliar desde agosto.
“Eu teria preferido que ele fosse preso por permitir a morte de 700 mil brasileiros, muitas mortes que poderiam ter sido evitadas, talvez acelerando o lançamento da vacina”, disse Orsi à Associated Press. “Mas como ele está sendo julgado e condenado por outros crimes, isso nos purifica a alma. Nos dá a sensação de que a justiça foi feita.”
Houve mais de 700.000 mortes atribuídas à COVID-19 no Brasil desde 2020, o segundo maior número de mortes no mundo depois dos Estados Unidos.
Em 2021, epidemiologistas da Universidade Federal de Pelotas estimaram que 4 em cada 5 dessas mortes poderiam ter sido evitadas se o governo Bolsonaro tivesse apoiado medidas de contenção e acelerado a compra de vacinas.
O governo de Bolsonaro ignorou repetidos apelos para assinar contratos adicionais de vacinas. Ele questionou publicamente a confiabilidade das injeções e zombou dos termos do contrato, sugerindo uma vez que os beneficiários da Pfizer não teriam nenhum recurso legal se “se transformassem em crocodilos”. O Brasil enfrentou escassez de vacinas e as doses foram liberadas em fases por idade e risco sanitário.
Cavalari morreu poucas semanas antes de ser elegível para a primeira dose, disse Orsi.
O mesmo aconteceu com o pai de Fábio de Maria, professor paulista de 45 anos.
“Quando ele foi internado no hospital, faltavam cerca de 15 dias para ele ser elegível para a primeira injeção”, disse de Maria. “Esse atraso foi fatal para ele e muitos outros.”
Seu pai morreu em maio de 2021, aos 65 anos. De Maria culpa Bolsonaro e outras autoridades que ele acredita serem cúmplices, mas disse que a condenação do ex-presidente não traz justiça.
“Muitas pessoas se sentem justificadas e não as culpo. Bolsonaro provocou muita raiva em muita gente, inclusive em mim”, disse. “Mas não acredito que tenha havido justiça para aqueles que morreram de COVID-19, porque não foi por isso que Bolsonaro foi condenado.”
Alcançando um ponto de viragem político
A pandemia marcou uma mudança de rumo na popularidade de Bolsonaro. Durante a campanha de 2022, que perdeu para Lula, anúncios de televisão reproduziram imagens de Bolsonaro zombando de pacientes com dificuldades para respirar, o que é um sintoma comum da COVID-19, e destacaram comentários amplamente vistos como desdenhosos das vítimas e de suas famílias.
“Bolsonaro perdeu por causa de sua postura negacionista durante a pandemia. A margem foi muito estreita”, disse Eduardo Scolese, editor de política do jornal Folha de S.Paulo durante o mandato de Bolsonaro e autor de “1461 Dias na Trincheira” (“1461 Dias nas Trincheiras”).
Esperava-se que o governo federal coordenasse a resposta inicial do Brasil, disse Scolese, mas Bolsonaro minimizou consistentemente a crise.
“Ninguém sabia quanto tempo isso iria durar. Os especialistas pediram distanciamento, enquanto ele se juntava à multidão”, disse Scolese.
Bolsonaro perde o controle
Enquanto o líder brasileiro resistia às medidas de saúde pública, os governos estaduais e locais impuseram as suas próprias. A disputa chegou ao Supremo Tribunal Federal, que determinou que estados e municípios poderiam decretar distanciamento, quarentenas e outras regras sanitárias.
“Foi quando Bolsonaro perdeu o controle. Ele começou a acreditar que todos estavam contra ele, especialmente o Supremo Tribunal Federal”, disse Scolese.
Em outubro de 2021, uma comissão do Senado recomendou cobrar de Bolsonaro por ações e omissões durante a pandemia, incluindo charlatanismo, incitação ao crime, uso indevido de fundos públicos e crimes contra a humanidade.
O caso ficou adormecido até setembro, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, ordenou que a polícia ampliasse a investigação. O caso continua em andamento e selado.
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Eléonore Hughes reported from Rio de Janeiro.
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