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Como você carrega uma casa que continua quebrando?

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Jovem de boné e vestido em um campo de futebol

Sempre pensei em Gaza como um lugar onde o tempo se encerrava. Um mundo fechado – denso, familiar, avassalador – onde você cresce muito rápido ou não cresce.

Eu era a criança que minhas tias, meus primos mais velhos e até as mães de meus amigos costumavam conversar sobre questões familiares, relacionamentos e problemas cotidianos.

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Minha professora me chamou de “língua afiada”, não porque eu fosse rude, mas porque me recusava a ser moldado para ser alguém mais suave, mais quieto, mais aceitável.

Às vezes, eu entrava em momentos que me lembravam que eu era uma criança – como costurar roupinhas para minhas Barbies com meus primos.

Mas normalmente eu pairava em algum lugar entre o mundo das crianças que não me entendiam muito bem e o mundo dos adultos cujas conversas eu de alguma forma entendia.

O mundo chamando

Às sextas-feiras, minha família costumava dirigir do nosso bairro em As-Sudaniya pela rua costeira al-Rashid até Rafah – cerca de uma hora de carro.

Num desses dias, Gaza parecia menos uma jaula e mais um lar.

Eu tinha 12 anos e meus irmãos e eu brincávamos sobre velhas lembranças – a maneira como meu irmão pronunciava mal as palavras, os pequenos desastres que se transformavam em piadas internas que só nós entendíamos.

Não nos afastamos dos meus pais, conversando e rindo, depois caminhando até a praia enquanto o cheiro de peixe temperado e a brisa fresca do mar envolviam o dia em algo quente e familiar.

Não são grandes lembranças, apenas minhas.

Eu sempre soube que iria embora. Lembro-me de uma reunião de família em que se perguntou a cada rapariga da minha idade onde planeava estudar – em Gaza, queriam dizer, nomeando universidades locais como se a pergunta não tivesse outra geografia.

Quando chegou a minha vez, deixei escapar: “Estudar em Gaza? Vou para o estrangeiro. Serei jornalista como o meu pai”.

Algumas pessoas me incentivaram. Outros riram. Mas já senti o mundo lá fora me chamando.

Quando deixei Gaza em 2019, aos 17 anos, para estudar relações internacionais, foi a primeira vez que voei sozinho e, como tinha menos de 18 anos, levava consigo um documento judicial que me permitia viajar sozinho.

Na passagem de Rafah, fiquei entre meu pai e meu irmão mais velho, Omar, memorizando seus rostos.

Assim que atravessei o Egito, começaram longas horas de salas de espera e verificações de segurança, o pânico silencioso de não saber se meu nome seria chamado para passar ou se seria mandado de volta.

Aeroporto do Cairo, depois Istambul e, finalmente, Chipre – cada paragem era um limiar que tive de ultrapassar.

Em todos os aeroportos, fui afastado para buscas extras por causa do meu passaporte preto. Os policiais perguntaram por que eu estava viajando sozinho, para onde estava indo, o que planejava estudar – perguntas comuns para eles que pareciam testes pelos quais eu tinha que passar para ganhar uma vida fora do único mundo que eu conhecia.

Asil Ziara na praia de Gaza em 2010 (Cortesia de Asil Ziara)

‘Você não está mais em Gaza’

Na minha primeira noite em Chipre, dormi mais profundamente do que alguma vez dormi na minha vida.

Quando acordei com um som alto, meu corpo entrou em pânico, como se fosse uma explosão. Corri para o corredor e encontrei rodas de malas arrastando pelo chão.

Então minha mente alcançou meu corpo: você não está mais em Gaza.

Naquela manhã, vaguei pelos dormitórios em busca de um minimercado. Alguém me disse que estava no porão, mas me perdi nos corredores, tentando comprar um adaptador e umas torradas.

Tudo parecia estranho – especialmente o silêncio.

Nada zumbia, nada pairava, nada ameaçava. A quietude quase me assustou.

Minhas primeiras conversas reais foram no curso preparatório de inglês da universidade. Era uma sala de aula pequena que parecia um mundo minúsculo: colegas de Chipre, Turquia, Líbano, Marrocos, Líbia.

Trocamos palavras e sotaques, e minha professora adorou a rapidez com que aprendi um novo vocabulário.

Quando disse às pessoas que sou da Palestina, alguns ouviram “Paquistão” ou apontaram vagamente para os seus mapas; Mostrei-lhes fotos e depois lugares.

Nas aulas, alguns perguntavam se “realmente tínhamos uma vida” ali. Uma pessoa perguntou, sinceramente, se Gaza existia. A confusão não foi maliciosa; era um vácuo na imaginação do mundo onde fica minha casa.

Certa vez, num mercado, ajudei um senhor idoso a encontrar uma caixa de leite. Depois de me agradecer, ele se apresentou, mencionando que era israelense. Meu peito apertou. Eu disse a ele meu nome de qualquer maneira.

Carregando Gaza no exílio

No meu primeiro ano, Gaza começou a parecer distante, como um sonho vívido do qual acordei muito rapidamente.

Cada rua que aprendi, cada rota de ônibus, cada manhã comum acrescentava uma camada de distância. Isso durou anos – até 7 de outubro de 2023, quando o sonho acabou e a distância diminuiu.

Durante a guerra, trabalhei remotamente com o meu pai, um jornalista em Gaza – traduzindo, monitorizando, esperando pelas suas mensagens para saber que ainda estava vivo.

O medo me encontrou; Tranquei-me num quarto durante meses, com medo de dormir.

Quando finalmente dormi, depois de semanas, acordei com a notícia de que meu primo Ahmed havia sido morto.

Ahmed tinha cerca de 30 anos e todos o chamavam de Saddam porque ele nasceu no dia em que Saddam Hussein disparou mísseis Scud contra Israel.

Ele costumava me chamar de “ya koshieh”, um apelido provocativo que significava “pessoa de pele escura” – uma pequena piada boba que de alguma forma parecia uma proteção.

A culpa pela sua morte foi imediata e irracional, como se a minha vigília pudesse tê-lo mantido vivo.

Perdemos mais familiares: meu tio Iyad e sua única filha, e meu tio Nael e sua esposa, Salwa. Israel apagou um ramo inteiro da nossa família numa noite.

Comecei a compreender quanto de Gaza eu tinha levado para o exílio.

Jovem de boné e vestido em um campo de futebolAsil Ziara no dia de sua formatura, 12 de julho de 2023, em Chipre (Cortesia de Asil Ziara)

Comecei a terapia em Chipre: sessões de conversação e, em seguida, trabalho focado no trauma assim que recebi o diagnóstico – transtorno de estresse pós-traumático, TEPT.

Estou mais firme agora, mas não creio que o trauma termine totalmente – não para as pessoas de Gaza. Ele muda, suaviza, ressurge. O trabalho não é “superar isso”, mas aprender a viver enquanto isso continua.

Costumo dizer que nasci na Palestina, mas fui formado em Chipre. Gaza me deu consciência; o exílio me deu a linguagem para entendê-lo.

O Egipto, e mais tarde Omã, acrescentaram novas camadas à mesma questão sem resposta: como é que se carrega uma casa que continua a quebrar?

Talvez seja por isso que, nos últimos dois anos, trabalhei e planejei reconstruir minha vida, para fazer um mestrado em diplomacia.

Quero tentar compreender o mundo cujas decisões moldaram a minha infância, as estruturas de poder que determinaram grande parte da minha história.

Quando as pessoas ouvem “Gaza”, muitas vezes pensam em “destruição”.

O povo de Gaza é como qualquer outra pessoa – excepto que a sua luta é multiplicada por forças fora do seu controlo.

Minha história é uma entre milhões. Mas espero que isso faça com que alguém em algum lugar sinta que Gaza é mais do que uma manchete.

Gaza são pessoas.

E as pessoas merecem viver.

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