No Festival de Cinema de Doha, uma das estreias regionais de destaque é “Meu Pai e Gaddafi”, o filme de estreia do diretor Jihan K. Em parte escavação pessoal, em parte cálculo político, o documentário traça a vida e o desaparecimento de seu pai, Mansur Rashid Kikhia, um advogado líbio de direitos humanos, ex-ministro das Relações Exteriores e embaixador da ONU que emergiu como um dos principais oponentes do regime de Muammar Kadafi. Quando desapareceu no Cairo, em 1993, a ausência repercutiu na sua família, na memória da Líbia e, em última análise, numa nação que enfrentava anos de convulsão política.
Jihan K, centro, com sua família em visita à Casa Branca para pressionar o presidente Clinton por ajuda na localização de seu pai.
Cortesia de Jihan K.
Para Jihan, que tinha seis anos quando o pai desapareceu, esse silêncio tornou-se formativo. O filme, que está sendo produzido há quase uma década, tenta juntar as peças de sua história por meio de testemunhos, arquivos e seu próprio cálculo de identidade. “Percebi que não queria que meu pai desaparecesse pela segunda vez”, lembra ela. “A primeira vez que eu era criança, indefeso em um jogo que não entendia. Dezenove anos depois, eu tinha contexto. Eu tinha arbítrio. E senti uma enorme responsabilidade de manter viva a memória de meu pai e, por extensão, da Líbia que ele amava e pela qual lutou.”
O filme começa com a infância de Jihan no exílio e se desenrola ao longo de décadas de convulsões políticas. A sua mãe, Baha Al Omary, uma artista síria, lutou publicamente por respostas enquanto criava os seus filhos num ambiente cuidadosamente protegido da incerteza. “Minha mãe abriu um espaço para alegria e normalidade”, explica Jihan. “Estávamos testemunhando a luta dela pelo meu pai, mas ela nos protegeu.”

Muammar Kadafi, ditador líbio, com Mansur Rashid Kikhia, pai do cineasta.
Cortesia de Jihan K.
Apesar do seu enquadramento político abrangente, “My Father and Kadafi” está ancorado numa narrativa íntima, com vídeos caseiros, entrevistas e arquivos políticos que proporcionam a paisagem visual. Mas para Jihan, uni-los exigia colaboradores de confiança. “Eu nunca tinha feito um filme antes. Não conhecia a estrutura da história. Então contratei editores melhores do que eu”, observa ela, rindo. “O que aprendi é que se você começar forte, com a essência central da história, isso lhe dá permissão para começar a tecer. Mas também tive que me conter. Por mais que eu ame a abstração, percebi que tinha uma missão de direitos humanos. Não passei nove anos apenas falando sobre mim. Eu precisava do público para entender a história da Líbia e o contexto da política do meu pai.”
Numa nação com pouca infra-estrutura cinematográfica e uma história devastada pelo autoritarismo e pela guerra, o empreendimento de Jihan tornou-se tanto pessoal como nacional. “Eu devia isso a mim mesma”, ela afirma com firmeza. “Eu mal podia esperar que o mundo me dissesse o que significava ser líbio. A história que nos foi contada, pelo Ocidente, por Kadafi, mesmo dentro da Líbia, era falha. Esta foi a minha oportunidade de esculpir isso e dizer: ‘Não. Quero a minha própria interpretação. Tenho direito a isso.'”
Seu processo envolveu falar com mais de 60 pessoas, incluindo familiares, amigos, diplomatas, idosos, muitos deles de uma geração passada, alguns que não viveram para ver o filme finalizado. “Comecei pensando que estava apenas recebendo informações. Mas depois percebi que também estava dando algo a eles. Sou como uma filha ou neta, usando este filme como um veículo para reparar uma ponte entre gerações”, reflete ela. “Esta é a minha forma de tradição oral.”
Dilemas éticos inevitavelmente acompanhavam o território, mas Jihan encontrou clareza ao descobrir que, estruturalmente, ela era a personagem principal do filme. “Isso me aterrorizou. Mas também me deu liberdade. É a minha perspectiva, como interpreto meu pai, minha mãe, Kadafi. Eu tinha princípios rígidos: não queria me apropriar do sofrimento da Líbia. Queria declará-lo como um fato, não como uma ferida. Tratei o público como empático e inteligente.”
A estreia do filme em Veneza revelou-se inesperadamente catártica. A Itália, que já foi a potência colonial responsável pelo massacre dos líbios no início do século XX, abraçou o filme com notável abertura. “Foi um lindo momento de círculo completo”, lembra Jihan novamente. “Eu nem precisei fazer nada. Eles falaram sobre sua própria brutalidade. Houve generosidade, uma vontade de confrontar essa história.”
Doha marca a estreia do filme no Médio Oriente e Norte de África, um marco que Jihan descreve como emocionante e atrasado. Apoiado pelo Doha Film Institute, o filme entra num cenário de jovens cineastas árabes que questionam identidade, pertencimento e herança política. “A Líbia ainda é um mistério para si mesma”, observa ela. “O sequestro da nossa identidade por Kadafi foi profundo. O meu filme é uma forma de colocar a Líbia de volta no mapa, permitindo que as pessoas se conectem com os líbios a partir de um lugar humano, separado da política esmagadora.”
O pan-arabismo também permeia silenciosamente a narrativa. Seus pais se conheceram através do ativismo pela Palestina. “A inteligência emocional em torno da Palestina é agora maior”, acrescenta Jihan. “As pessoas podem ver como estas lutas estão interligadas. Líbia, Palestina, todas estas forças – é uma história partilhada.”
Enquanto se prepara para mais exibições em festivais, um sonho permanece: mostrar o filme aos líbios.



