No Cairo Internacional deste ano. Festival de Cinema, a cineasta iraquiana Zahraa Ghandour marca um marco notável com “Flana”, um documentário centrado nas realidades vividas pelas mulheres iraquianas. Após a estreia mundial em Toronto, o filme chegou ao Cairo no âmbito da competição Horizontes do Cinema Árabe, não apenas como uma estreia promissora, mas como uma obra rara no cinema iraquiano, moldada por uma mulher que vive no interior do país e se concentra em histórias muitas vezes marginalizadas ou silenciadas.
O caminho de Ghandour para o cinema começou há mais de uma década, não na escola de cinema, mas na televisão iraquiana. Com apenas 20 anos, ela começou a apresentar e eventualmente dirigir o popular documentário “52 Minutes”, um programa que ela agora chama de sua “fundação”. Semana após semana, ela viajou por todo o país para fazer reportagens sobre questões sociais como casamento precoce, violência doméstica, leis injustas, prisões femininas – histórias tão difundidas que tanto colegas como o público brincaram que ela trabalhava apenas em “questões femininas”. No entanto, para Ghandour, estas não eram “questões das mulheres”, mas sim as realidades sistémicas que as mulheres iraquianas enfrentam todos os dias. “Havia uma infinidade de assuntos para abordar”, lembra ela. “E adorei. Fui a todo o Iraque por causa deste espectáculo.”
Mas mesmo tendo atuado em vários filmes independentes iraquianos, ela sentiu que nenhum foi suficientemente longe. “Eles eram todos sobre mulheres complicadas, mas nenhum foi escrito ou dirigido por mulheres”, observa ela. Quando começou a trabalhar em “Flana” em 2018, percebeu que não poderia mais se esconder atrás das histórias de outras mulheres sem confrontar a sua própria. Ao crescer, ela se lembra de ter sido tratada como “menos” que o irmão, não por ele, mas por uma sociedade estruturada para celebrar os meninos em detrimento das meninas. “Senti que faltava a verdade se não falasse sobre a história que mais conhecia”, reflete ela. “Está tudo conectado.”
“Flana” começa com a busca desesperada de Ghandour por sua amiga de infância, Noor, cujo desaparecimento duas décadas antes a assombra até hoje. Expande-se numa escavação da violência sistémica enfrentada pelas mulheres iraquianas, desde as tradições patriarcais até aos fracassos legais não resolvidos do país em torno dos crimes de honra. Para Ghandour, o pessoal torna-se um grito de guerra. “Se estas questões pessoais não forem abordadas de forma justa, então são políticas”, argumenta ela. “As pessoas deveriam gritar sem parar nas ruas para impedir que as meninas sejam jogadas nas ruas, para impedir que esses criminosos assassinem suas esposas e filhas, para que haja leis justas.”
Trazer essa verdade para a tela, no entanto, exigiu não apenas clareza artística, mas também estratégias constantes e riscos imensos. Ghandour fala abertamente sobre o medo que acompanhou o projeto desde o início. “Às vezes temo a reação física”, ela admite, apontando para preocupações com represálias. Ela estava mais nervosa com a sua estreia árabe no Cairo do que com a de Toronto “por causa da forma como esta sociedade pensa e porque havia muitos iraquianos na audiência, fiquei nervosa com a possível reacção”.
Sua preocupação decorre da experiência. Quando falou publicamente sobre a violência de género no passado, foi acusada de “destruir a imagem iraquiana”, como se reconhecer a injustiça fosse uma traição e não uma exigência de responsabilização. “Há muita negação na sociedade”, lamenta ela. “As pessoas levam isso para o lado pessoal porque não estão fazendo nada a respeito.”
Durante a produção, ela muitas vezes teve que mentir para as autoridades para filmar com segurança, enviando uma sinopse falsa sobre mulheres iraquianas empoderadas ganhando oportunidades. Em casas particulares, salas de parto e abrigos, as mulheres que lhe permitiram filmar confiaram-lhe as suas identidades e, em alguns casos, as suas vidas. Várias mulheres inicialmente se recusaram a aparecer diante das câmeras, embora uma delas tenha mudado de ideia depois de conquistar a confiança de Ghandour. Mesmo assim, Ghandour tomou a difícil decisão de remover personagens inteiros do filme se temesse pela segurança deles. Num caso, ela excluiu uma figura-chave porque apresentar a sua história poderia expô-la a retaliações.
O núcleo do filme, no entanto, centra-se em duas mulheres: a tia de Ghandour, uma parteira cuja casa se torna um refúgio, e Natalie, também conhecida pelo pseudónimo de Leila, cuja viagem através de abrigos e da violência familiar revela o custo humano do vazio jurídico do Iraque no que diz respeito às mulheres. Ambas as mulheres viram o filme. A tia de Ghandour ofereceu uma resposta emocionante e encorajadora, enquanto Natalie ficou impressionada com sua aparência na tela, consciente da cirurgia reconstrutiva que precisava para o queixo machucado, resultado da violência que enfrentou. A equipe agora está ajudando a arrecadar fundos para a operação.
O título do filme captura o apagamento contra o qual Ghandour está lutando. No Iraque, “flana” é um termo usado para designar uma mulher cujo nome é esquecido ou ignorado, “como se ela não merecesse menção”, explica ela. Ela deliberadamente transformou isso em um nome, uma presença.
Internacionalmente, “Flana” chega num momento em que as realizadoras árabes ganham uma visibilidade sem precedentes. Ghandour, recém-exibido no IDFA, vê esse impulso claramente. “As mulheres estão trabalhando mais no cinema e tendo a chance que merecem”, observa. No Iraque, o filme chega no meio de uma pequena mas significativa mudança: o país emitiu este ano o seu primeiro fundo público para o cinema, e jovens cineastas das gerações dos anos 80 e 90 estão a trilhar um caminho sem escolas formais de cinema ou infra-estruturas industriais estabelecidas.
No entanto, “Flana” é singular. É o primeiro filme iraquiano sobre mulheres feito por uma mulher que vive no Iraque. “Isso foi mais importante para mim do que ser selecionada por um grande festival”, comenta ela. “É um ponto no caminho, um entre muitos. Mas foi notado.”
O Cairo, inesperadamente, tornou-se um ponto de viragem. “Eu não esperava que as pessoas se importassem”, lembra ela sobre a exibição esgotada do filme na Opera House. “Aquele teatro lotado mudou algo em mim. Me deu confiança, no ‘Flana’ e no público árabe.”
Em seguida, Ghandour planeja uma estreia no Iraque, uma turnê nacional em cidades sem cinemas e um livro de ensaios, poesia e quadrinhos inspirados no filme. As emissoras de toda a região estão conversando. A Al Jazeera, por exemplo, manifestou interesse.
Mas, no fundo, Ghandour espera que “Flana” desencadeie algo muito mais simples e muito mais urgente: um acerto de contas com os abrigos, os crimes de honra e a brutalidade quotidiana que as mulheres enfrentam em todo o Iraque e, além disso, um caminho para a responsabilização.
“A experiência me mostrou que é possível fazer mais, continuar avançando”, conclui. “E para qualquer um que tente nos prejudicar, sabemos exatamente o que estamos fazendo.”



